terça-feira, 15 de novembro de 2016

Plantar é muito bom

Aliás, plantar é muito bom. Não sei no campo, mas em apartamento, assim na sombra e com água potável do lado é uma delícia. Botar mão na terra, encardir a unha que depois vai dar trabalho pra limpar, fazer bolinha de húmus com folha em decomposição, regar muda, transplantar muda, salvar muda que caiu do berçário, ter delírio e devaneio de autossuficiência e de plantar num hectare todo. O único problema é que, depois, qualquer outro trabalho parece muito desinteressante.

Aprendizado hortelão

Umas perdas com aprendizados na horta da sacada. As beterrabas e as cenouras não foram pra frente. Provavelmente uma combinação de solo inadequado com falta de espaço e de sol. Era só um experimento pra ver se dava alguma coisa com pouco espaço e pouco sol. Não deu. Talvez com muita irrigação e adubação e sol pleno eu pudesse conseguir umas cenourinhas como as que vendem na feira de orgânicos. Os tomates Carolina também iam mal: tinham muito espaço mas pouco sol. Então os transplantei para a jardineira em que eu tentava cultivar minibeterrabas — pequena e estreita para caber no parapeito onde tenho algum sol pela manhã. Vou tentar cultivá-los como rasteiros, mesmo, sem suporte de bambu:



E para uma outra jardineira eu transplantei dois pés de manjericão e, no meio, um pé de tomate. Já é quase uma pizza:


No vaso à esquerda tem cebolinha, à direita tem outro manjericão, que pode ser Gennaro ou alfavaca (minha nomenclatura grosseira pra folha grande e folha pequena). Ainda não dá pra diferenciar pelas folhas nesse tamanho. No berçário eu tinha plantado duas alfavacas e dois Gennaro, mas só de uma das espécies vingaram duas sementes.

Não sei se nada disso vai funcionar. Não sei se é prudente botar um tomate no meio dos manjericão — provavelmente não, mesmo que eu pretenda botar ali um suporte de bambu para as primeiras fases. Eu poderia encontrar essas informações rapidamente numa busca na internet ou num livro especializado, mas estou medindo outras coisas ainda, como irrigação, adubação, quantidade de sol, espaço, etc. Não é um experimento comercial e nem dependo disso pra comer, então não tenho muito a perder além da paciência. Quero ver, por exemplo, se a muda do tomate chega a crescer um pouco mais recebendo um pouco mais de sol, estando no parapeito e não no chão. Tenho uma muda de controle num vaso no chão, que vou continuar irrigando pra depois poder comparar com a muda do parapeito.

Aprender essas coisas na experimentação e sem ler nada nem conversar com quase ninguém nem ter espaço nem muito tempo é trabalhar numa ignorância mais profunda que tentar reinventar a roda; é meio que tentar reinventar a agricultura (que já pode ter sido uma má ideia da primeira vez) com a mentalidade de uma criança de jardim da infância: EU quero mexer na terra, EU quero semear, EU quero ver desse outro jeito, EU EU EU.

A vantagem é que você se sente um pouquinho, bem pouquinho, como um Homem Primitivo, totalmente intrigado por coisas bem simples da natureza, como solo, luz, água, vento, noite, insetos, fungos, calor. É lindo perceber a palpabilidade desse mundo orgânico do qual a minha carcaça faz parte. Mas também é depret perceber que, no intervalo de uma ou duas gerações, plantar um pé de tomate seja motivo de assombro ou fracasso. Árvores sintáticas podem ser úteis, mas também quero plantar tomate.

sábado, 15 de outubro de 2016

Amigos Químicos

Kemialliset Ystävät é o nome de um projeto musical do finlandês Jan Anderzén, que, com colaboradores, compõe e grava experimentalismos desde 1995. Eu tinha algumas músicas perdidas numa pasta de música muy criativamente intitulada "folk" há aproximadamente 10 anos, mas nunca tinha parado pra ouvir. Botava pra tocar uma vez ou outra mas tirava porque a sonoridade provavelmente não correspondia ao estado emocional em que eu me encontrava ou que desejava provocar, como se tivesse um simulador de emoções de Do Androids Dream of Electric Sheep? Mas últimas semanas eu passei ouvindo um disco mais recente deles, o Alas Rattoisaa Virtaa, lançado em 2014, que tem esta belíssima capa e pode ser ouvido no Spotify ou no Bandcamp da gravadora.


O fato é que tive vários momentos proustianos com esse disco: me peguei devaneando sobre a natureza da música, das notas, dos timbres, da relação entre eles. Fiquei pensando no quanto determinadas frases melódicas que ouvimos pela primeira vez interagem com nosso aparato sensorial de modos únicos e imprevisíveis, sendo capazes, essas frases específicas, de gerar no aparato sensorial algumas reações também específicas de prazer, defesa, curiosidade, nostalgia, mas principalmente o prazer da surpresa do primeiro contato de algo bastante efêmero no tempo, que se dissolve em poucos segundos, deixando nos neurônios uma sensação de que foram tocados por algo fluido, aerado, fugidio, como um vento que nos deixa no braço um arrepio.

Uma propriedade que sempre me chamou a atenção nas poucas coisas que ouvi de música erudita foi que elas não se apoiavam tão diretamente em repetição, mas buscavam explorar uma diversidade de texturas e estados emocionais, geralmente com transições longas de um estado para outro, às vezes alcançando um retorno ou resolução de conflito, como numa narrativa, mas proporcionando alguns desses prazeres efêmeros de poucos segundos que se dissolvem e deixam na memória um retrogosto distinto. Raras vezes tive paciência pra sentar e ouvir música erudita, e lamento minha ignorância nesse universo, pois parece riquíssimo. Mas divago, não é disso que quero falar.

Nos Ystävätt não há quase nada de clássico, erudito, tradicional — pelo menos não na superfície. Se levei 10 anos pra ouvir, agora naturalmente vou ter dificuldade pra descrever. Mas me dou a liberdade de definir a música como uma demência muito deliciosa. É uma colagem eletrônica de uma miríade de timbres e linhas melódicas e rítmicas que vão se insinuando de forma bem caótica nos poucos minutos que compõem cada faixa. Sendo um trabalho experimental, tem pouca fórmula aparente. Como estamos na internet, vou me dar a liberdade de botar aqui um vídeo ("Arkistorotat") e tentar uma descrição ao mesmo tempo e pra imaginar que algumas dessas observações possam ser generalizadas como descrição do que fazem (ou do que podem fazer) os Amigos Químicos (segundo o Google Translate, essa é a tradução de "Kemialliset Ystävät").



Começa a música e somos jogados numa sequência de frases rápidas que lembram melodias de videogame em loop, acompanhadas por um bumbo. Esses timbres que parecem videogames ou brinquedos eletrônicos em geral são muito frequentes no álbum, no projeto, no folk finlandês contemporâneo e no folk estranho em geral. Vários artistas inclusive gravam os sons dos próprios brinquedos de infância e usam esses sons nas composições, o que é um negócio bem bonito e cheio de potencial pra significados intimistas e um pouco de transtorno compartilhado.

Então, em menos de quinze segundos, surgem na música palmas, um jogral de adolescentes, uma cuíca?, um chocalho, um flautim serpentinado, um theremin tagarela, um órgão, um baixo e outros elementos sintetizados que vão se pronunciando e se ocultando em intervalos pouco fixos mas que dão a sensação de uma ciranda com alguma regularidade em torno de um mastro imaginário (as crianças? o bumbo? outra coisa? ou nenhum centro, com cada um girando só?).

Aos 70 segundos (1:10 no vídeo), surgem umas cornetas desafinadas que parecem propor um tema meio épico para a peça; sintetizadores compram e repetem a ideia, e quem está no canto da sala até chega a preparar um campo harmônico pra esse tema. Mas logo o pessoal parece desistir e não concordar com a proposta épica talvez por julgá-la sisuda ou pomposa demais. Entra uma breve comitiva de marimbas, crianças brincando de lutinha e sanfonas com movimentos dissonantes, como se testando um movimento ou conferindo a afinação. Esse interlúdio informal dura 40 segundos e é seguido pela volta dos protoépicos e desafinados sintetizadores cornetoides, que por fim parecem convencer os convivas a executar brevemente o tema marchante numa conversa rápida com theremin e companhia. Tudo se abafa abruptamente e se encolhe às palmas e por fim acaba num um theremin mais grave, lúgubre, que no álbum deságua num tema bem mais geométrico e em tons menores.

As outras peças são bem diferentes e seria torturante tentar descrever mais do que uma faixa. Mas está sempre lá o elemento de surpresa, de você não saber o que pode aparecer na esquina dos próximos dez segundos — e como, e por que, e de onde, e com quem, e que diabo significa aquilo e é claro que significa muita coisa mas também não significa nada e caramba tem um sapo coaxando aqui? Às vezes algumas frases se repetem e os elementos delas parecem concordar numa dança gramatical transitória, efêmera, que dura assim uns três ou quatro segundos e logo se dissolve no caos e segue o baile. É muita física quântica.

Ouve aí.


quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Notas sobre férias

Nesse verão eu decidi fazer algo de diferente. Decidi ficar na minha casa, que não tem piscina, tomando meus bons cafés e aproveitando a trégua da chuva para observar com atenção os diferentes tons de azul do céu insular: a cor varia de acordo com a umidade e as finas camadas de nuvem que estão sempre por aqui. É um azul mais fraco e muito diferente do típico céu continental, que ainda me dá saudades ocasionais.


Tento ir à praia mas não dá certo: com a intenção de passar quatro horas lendo, tenho muita dificuldade para cravar na areia um guarda-sol e me sentar numa cadeira de plástico. Em poucos minutos aparece um casal arrastando quilos de tralha de praia. Primeiro montam uma barraca e várias cadeiras; logo chegam crianças e outros adultos que vão despejando seus pertences ao lado e embaixo do meu guarda-sol; montam outro guarda-sol e outras cadeiras. Todos falam alto em espanhol e parecem ter uma noção de espaço pessoal muito diferente daquela com a qual estou acostumado. Desmonto o meu guarda-sol, afasto minha cadeira em um metro e eles tomam a área na qual eu me sentava. Agem com uma naturalidade invejável. A maré sobe e engole a faixa de areia em poucos minutos.

Poucos dias depois, N. e eu subimos a serra para acampar durante um final de semana. Levo a barraca barata que comprara só para ver se esse contato um pouco (mas não muito) mais íntimo com a natureza é desejável, tolerável, viável. Logo percebo que esqueci em casa itens importantes como as lanternas de dínamo e outros cacarecos de acampamento, como talheres leves e uma imitação de canivete suíço, e lamento. Em Urubici, trato de providenciar uma lanterna para que naquela noite eu tenha por fim a chance de terminar de ler A divina paródia. Durmo muito fácil e acordo com os pés congelando às três da manhã para buscar um cobertor que ficou no carro. De manhã, está uns doze graus Celsius.






Urubici pouco mudou nos últimos dois anos. Um produtor de mel abriu uma loja na rodovia, algumas ruas foram asfaltadas, uma sorveteria fechou, inauguraram um Sesc bonito com alguns livros bons à vista e comida barata para almoço e jantar. O resto parece igual.






Urubici se anuncia num outdoor como “terra de belas paisagens” e isso é verdade. O município tem muitas cachoeiras, montanhas verdes, formações rochosas peculiares e ancestralíssimas, inscrições rupestres, cavernas, grutas etc. Fotografadas, essas paisagens dão ótimos cartões postais ou retratos para amigos e familiares. Vistas pessoalmente, se acoplam à rede neuronal do observador com uma adesividade que certamente só se afrouxará quando desgastada por processos biológicos mui corrosivos. Mas talvez por serem tão peculiares e distintas e memoráveis e observadas com tamanho deslumbre, não impressionam tanto na segunda visita.

Por isso, o que eu mais queria fazer era uma caminhada de nove quilômetros que começa e termina na SC-370 a aproximadamente dois quilômetros da Esquina, na localidade conhecida como Invernadouro, Invernadeiro ou algo assim:






Não é trilha, não há turistas nem comércios: é estrada de chão batido com pequenas propriedades rurais, animais domesticados, igrejinhas, vespas e duas pontes, uma para cada vez que se cruza o Rio Canoas.






Caminha-se esse trecho com tranquilidade em duas horas, incluindo tempo para parar, tomar
água e descansar na sombra e banhar-se no rio de água gelada mesmo nos dias mais quentes.







É uma área rural muito atrativa e quase chego a ter vontade de comprar um sítio (é barato), envelhecer e morrer por ali.





Também é um local onde se faz amizade com relativa facilidade. Este camarada, por exemplo, ficou muito contente e à vontade com a visita que recebeu.





Depois fui a São Paulo, onde visitei minha irmã que neste mês faz vinte anos, comprei 13 kg de livros na região central, vi uma cigana vestida com trapos cinzas fazendo um ritual com dois ramos de folhas verdes ao lado de um carro perto do Terminal Rodoviário do Tietê, comi num apertado restaurante japonês japonês mesmo da Liberdade que parecia cenário caótico do Takashi Miike, ganhei três ótimas e perigosíssimas facas dos meus sogros, jantei numa cantina italiana que parecia uma funilaria com camisetas de vários clubes de futebol penduradas no teto e uma foto do Sidney Magal na saída, cruzei a avenida Rebouças numa bicicleta do Itaú e por fim conheci o serviço do Uber no carro de uma senhora que, com muita habilidade e cortesia, dirigiu até o aeroporto de Guarulhos debaixo de uma tempestade tropical numa viagem muito mais confortável, rápida e barata do que uma viagem semelhante feita num táxi ou num ônibus.

domingo, 10 de janeiro de 2016

Será se é romance?

Nesse janeiro faz três anos que tive uma ideia prum romance. Anotei algumas epifanias e as guardei sem escrever nada. Nos últimos meses, topei com essa ideia mexendo em arquivos antigos enquanto testava o ótimo programa de escrita WriteMonkey. Seria um romance que eu gostaria muito de ler — principalmente se alguém se desse ao trabalho de escrevê-lo por mim. Acho que é um bom presságio de que a pessoa não enfrentará a desagradável sensação de começar a escrever um troço, dedicar uns quarenta e oito dias de trabalho relativamente árduo e, numa manhã qualquer, ler a história toda e pensar nossinhora que bagulho chato. Não que tenha acontecido comigo. Mais de uma vez? De jeito nenhum.

Mas desse romance eu gosto. Talvez por não ter escrito nada. A premissa me soa completa, o ambiente é Santa Catarina, os personagens parecem flexíveis o bastante pra acomodar as estripulias que eu gostaria que fizessem. Aliás, acho fascinante esse estágio ontológico dos personagens: revelam-se aos poucos, mostrando vícios de linguagem, habilidades manuais, interesses, qualidades, alguma psicose. Mas é tudo incipiente. Eu os vejo no curral, na casa, montados em tratores chegando à beira da estrada numa manhã úmida e nublada. Mas são como figuras 3D naquele momento do jogo em que os personagens esperam que você, o jogador, tome alguma ação que moverá a narrativa. Um algoritmo básico de animação mantém alguma vida no cenário — vento, ruídos de fundo, pequenos movimentos corporais dos personagens como trocar o peso de uma perna para a outra, suspirar, usar um objeto como uma vassoura ou um relógio só para matar o tempo. É assim que vejo os meus personagens na fazenda, à espera de uma série infinita de comandos que provavelmente levarei dez anos para executar.

Às vezes também visualizo aquela cena de Esqueceram de Mim, em que o Kevin quer simular uma festa em casa: bota um display do Michael Jordan em cima dum trenzinho que fica circulando pela sala e arma uma engenhoca com manequins que se mexem em resposta ao comando de cordas. Os objetos aparecem como sombras numa cortina, dando a ilusão de pessoas que conversam, dançam e andam pela sala ao som de uma musiquinha feliz de natal. Vejo meus personagens jantando porco, como sombras numa cozinha sem cortina. Mas na minha cena não há musiquinha feliz: só sons de talheres com vidro em segundo plano; em primeiro plano, ouço grilos, cigarras e uma ocasional coruja. Curiosamente, não chove.

domingo, 3 de janeiro de 2016

Adeus, bici

Furtaram minha bici da garagem do prédio. Não era cara, mas tinha vários pequenos acessórios que me deram certo trabalho (e custaram dinheiro) para colocar. Mais um prejuízo causado por este cagadíssimo condomínio em que nada funciona: foi pro ralo qualquer economia com taxa mensal baixa. Lamento nem tanto o ligeiro prejuízo, mas essa coceirinha, essa pulguinha atrás da orelha que, a cada vez que me dou mal aqui, engorda um pouquinho e me solta no ouvido um arroto que lembra muito o som de troooouuuu-xa.

sábado, 2 de janeiro de 2016

Adeus, Joe

Sonhei que o guitarrista Joe Satriani estava de passagem pelo Brasil. Por algum motivo, ele acabava no meio de uma manifestação dizendo coisas que desagradavam aos manifestantes em geral. Quando disse algo muito desagradável, levou um chute na boca que o fez perder dentes, sangrar muito e desmaiar. A partir daí, os manifestantes passaram a desferir chutes e socos no Joe, que logo acabou despedaçado. Por fim, alguém segurou a cabeça dele pelas orelhas e a arremessou contra uma parede chapiscada. Isso me foi relatado por um sujeito que dizia ter testemunhado a agressão; ele me contava ainda que, em resposta, o Ministro da Justiça anunciara a proibição de algo chamado Deso do Dez. O sujeito foi embora e eu fiquei na calçada de casa balbuciando “Porra mas que barbaridade inacreditável quantas tardes passei aos treze anos ouvindo e tirando Love Thing, que descanse em paz pois jamais será esquecido” e chorava enquanto catava na sarjeta uma bituca recém-desprezada por um transeunte e começava a fumar o tabaquinho da morte.

O mar

Tive o sonho mais estranho essa noite. Nele eu estava à beira-mar numa cidade que não é a minha cidade atual. Estava no calçadão ao lado de ...