sábado, 15 de outubro de 2016

Amigos Químicos

Kemialliset Ystävät é o nome de um projeto musical do finlandês Jan Anderzén, que, com colaboradores, compõe e grava experimentalismos desde 1995. Eu tinha algumas músicas perdidas numa pasta de música muy criativamente intitulada "folk" há aproximadamente 10 anos, mas nunca tinha parado pra ouvir. Botava pra tocar uma vez ou outra mas tirava porque a sonoridade provavelmente não correspondia ao estado emocional em que eu me encontrava ou que desejava provocar, como se tivesse um simulador de emoções de Do Androids Dream of Electric Sheep? Mas últimas semanas eu passei ouvindo um disco mais recente deles, o Alas Rattoisaa Virtaa, lançado em 2014, que tem esta belíssima capa e pode ser ouvido no Spotify ou no Bandcamp da gravadora.


O fato é que tive vários momentos proustianos com esse disco: me peguei devaneando sobre a natureza da música, das notas, dos timbres, da relação entre eles. Fiquei pensando no quanto determinadas frases melódicas que ouvimos pela primeira vez interagem com nosso aparato sensorial de modos únicos e imprevisíveis, sendo capazes, essas frases específicas, de gerar no aparato sensorial algumas reações também específicas de prazer, defesa, curiosidade, nostalgia, mas principalmente o prazer da surpresa do primeiro contato de algo bastante efêmero no tempo, que se dissolve em poucos segundos, deixando nos neurônios uma sensação de que foram tocados por algo fluido, aerado, fugidio, como um vento que nos deixa no braço um arrepio.

Uma propriedade que sempre me chamou a atenção nas poucas coisas que ouvi de música erudita foi que elas não se apoiavam tão diretamente em repetição, mas buscavam explorar uma diversidade de texturas e estados emocionais, geralmente com transições longas de um estado para outro, às vezes alcançando um retorno ou resolução de conflito, como numa narrativa, mas proporcionando alguns desses prazeres efêmeros de poucos segundos que se dissolvem e deixam na memória um retrogosto distinto. Raras vezes tive paciência pra sentar e ouvir música erudita, e lamento minha ignorância nesse universo, pois parece riquíssimo. Mas divago, não é disso que quero falar.

Nos Ystävätt não há quase nada de clássico, erudito, tradicional — pelo menos não na superfície. Se levei 10 anos pra ouvir, agora naturalmente vou ter dificuldade pra descrever. Mas me dou a liberdade de definir a música como uma demência muito deliciosa. É uma colagem eletrônica de uma miríade de timbres e linhas melódicas e rítmicas que vão se insinuando de forma bem caótica nos poucos minutos que compõem cada faixa. Sendo um trabalho experimental, tem pouca fórmula aparente. Como estamos na internet, vou me dar a liberdade de botar aqui um vídeo ("Arkistorotat") e tentar uma descrição ao mesmo tempo e pra imaginar que algumas dessas observações possam ser generalizadas como descrição do que fazem (ou do que podem fazer) os Amigos Químicos (segundo o Google Translate, essa é a tradução de "Kemialliset Ystävät").



Começa a música e somos jogados numa sequência de frases rápidas que lembram melodias de videogame em loop, acompanhadas por um bumbo. Esses timbres que parecem videogames ou brinquedos eletrônicos em geral são muito frequentes no álbum, no projeto, no folk finlandês contemporâneo e no folk estranho em geral. Vários artistas inclusive gravam os sons dos próprios brinquedos de infância e usam esses sons nas composições, o que é um negócio bem bonito e cheio de potencial pra significados intimistas e um pouco de transtorno compartilhado.

Então, em menos de quinze segundos, surgem na música palmas, um jogral de adolescentes, uma cuíca?, um chocalho, um flautim serpentinado, um theremin tagarela, um órgão, um baixo e outros elementos sintetizados que vão se pronunciando e se ocultando em intervalos pouco fixos mas que dão a sensação de uma ciranda com alguma regularidade em torno de um mastro imaginário (as crianças? o bumbo? outra coisa? ou nenhum centro, com cada um girando só?).

Aos 70 segundos (1:10 no vídeo), surgem umas cornetas desafinadas que parecem propor um tema meio épico para a peça; sintetizadores compram e repetem a ideia, e quem está no canto da sala até chega a preparar um campo harmônico pra esse tema. Mas logo o pessoal parece desistir e não concordar com a proposta épica talvez por julgá-la sisuda ou pomposa demais. Entra uma breve comitiva de marimbas, crianças brincando de lutinha e sanfonas com movimentos dissonantes, como se testando um movimento ou conferindo a afinação. Esse interlúdio informal dura 40 segundos e é seguido pela volta dos protoépicos e desafinados sintetizadores cornetoides, que por fim parecem convencer os convivas a executar brevemente o tema marchante numa conversa rápida com theremin e companhia. Tudo se abafa abruptamente e se encolhe às palmas e por fim acaba num um theremin mais grave, lúgubre, que no álbum deságua num tema bem mais geométrico e em tons menores.

As outras peças são bem diferentes e seria torturante tentar descrever mais do que uma faixa. Mas está sempre lá o elemento de surpresa, de você não saber o que pode aparecer na esquina dos próximos dez segundos — e como, e por que, e de onde, e com quem, e que diabo significa aquilo e é claro que significa muita coisa mas também não significa nada e caramba tem um sapo coaxando aqui? Às vezes algumas frases se repetem e os elementos delas parecem concordar numa dança gramatical transitória, efêmera, que dura assim uns três ou quatro segundos e logo se dissolve no caos e segue o baile. É muita física quântica.

Ouve aí.


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