sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Culpa nos filmes de terror

Faz pouco tempo que me interessei por filmes de terror. Assisti a poucos filmes americanos antigos, alguns contemporâneos, poucos europeus e vários orientais — um saco de generalização onde boto filmes principalmente japoneses, com alguns coreanos, chineses, indonésios, etc.
Tenho uma tese que explica por que os orientais são melhores. É bem simples e aqui só quero registrar sem delongas nem forma acadêmica. (Todavia: sinta-se livre pra copiar isso). Mas a tese: o que diferencia as duas formas de fazer terror é como os dois centros de produção abordam a culpa na tragédia pessoal.
No terror japonês, a tragédia essencialmente acontece com você, aparece no seu caminho. Você recebe e repassa a tragédia. Ela é parte de um fluxo, e nas histórias é difícil pensar num conceito de culpa pessoal. Ninguém tem culpa, ou todos têm culpa, em algum nível.
Toda história é uma variação ou releitura de: uma pessoa (geralmente mulher, às vezes criança, mas sempre uma pessoa com ação ou volição limitada) passa por um lance muito errado e morre errado, perturbada e ressentida. A bad vibe se apega a lugares, objetos ou situações (mais recentemente em tecnologia, como vídeos ou computadores). A boa e velha assombração. Tempos depois, alguém tropeça nisso (acha o objeto, muda pruma casa, visita um local abandonado) e recebe a maldição: pira, sofre, causa estrago e morre, também ressentida, também causando ressentimento. E o ciclo recomeça.


Algumas histórias tentam (de leve) mostrar o começo do ciclo maldito, como um estupro ocorrido há décadas ou séculos, mas fica difícil saber onde aquilo começou e se teve começo. Por exemplo: o estuprador era perturbado? Tava amaldiçoado, também? Nessas teias de causalidade, fica difícil pensar em culpa pessoal. Se formos ocidentalizar a explicação e buscar uma culpa (um pecado), essa culpa é da comunidade, do mundo, do caos, da vida, das vontades, dos relacionamentos humanos, d’aquilo que existe, enfim.
Pouco sei sobre o Japão pra comentar as raízes culturais disso.
Já nos terrores americanos contemporâneos, a culpa da tragédia terror é “ter pensado e feito a coisa burra”. Isso é dar um passo à frente da noção ocidental de que a tragédia acontece quando se faz a coisa errada (o pecado, a falha moral). Não basta nem precisa ser errado. Toda história é uma variação ou releitura de: “o cara se deu mal porque é burro, quem mandou ser tontão, eu acho é pouco”. É o outro lado do fetiche americano que diz “o cara se deu bem porque foi esperto, palmas pra ele”.
Enredo lorem ipsum: grupo de jovens cheios de ação e volição resolve explorar algo fora da norma, soturno ou não. Um lugar abandonado, uma viagem não autorizada, mas quase sempre distanciamento físico da sociedade. Chegar ao perigo já é uma baita dificuldade, porque tá longe e porque no caminho os jovens ouvem avisos, alertas, sinais de que não deveriam estar fazendo aquilo. (O público se sente massageado ao identificar esses sinais. É quase como se o filme estivesse lhes dando um tapinha nas costas, parabenizando-os pela perspicácia e esperteza.)
O perigo é basicamente o mal e variações (psicopata, besta, possessão, seita soturna) e sua extrapolação pro sofrimento físico e material. Chegando ao perigo, acontece o conflito e a ilusão de que os jovens ainda teriam uma chance de se salvar com qualquer pitada de inteligência. A salvação entra em promoção: ter um mínimo de bom senso já evitaria essa situação deselegante. Mas sendo estúpidos, eles sofrem e morrem. O público dificilmente sente uma empatia real. A burrice justifica a tragédia.



E justificar a tragédia é importante. Um naco considerável do DNA cultural americano (puritanismo, livre iniciativa, justiça, destino manifesto) não aceita que tragédias simplesmente aconteçam só porque alguém existe. A justiça é imprescindível porque o mundo é criado governado por um deus justo, no fim o bem triunfará, etc. O público quer a emoção, quer ver o sangue pingar, desde que não sangre o Cidadão de Bem®, e se sangrar, tem de ser vingado. Porque o contrário seria grotesco, puro mau gosto, as pessoas sairiam da sala no meio do filme, falariam mal dele e lá se vai a arrecadação do filme.
Então é um movimento de mão dupla. Os filmes tanto refletem um fetiche americano quanto respondem às demandas culturais e comerciais dele, e nisso ajudam a cimentar e amarrar aquela visão de mundo estereotipada dos “americanos”: você tem que ser esperto, ter iniciativa, porém ouvir os bons membros da comunidade, não contrariar o senso comum, arrepender-se rapidamente caso erre, ficar perto do bem e ficar longe do mal. Se não faz isso tá pedindo pra morrer.
Nenhuma novidade nisso, exceto que são filmes de terror, um bom espaço pra contracultura, subversão e experimentalismo. Mas por Z motivos isso geralmente não acontece e o resultado é um monte de filme de tia. Eu às vezes assisto pra ver se tem algo novo, porque tá fácil no Netflix, mas por fim entro no clima e acabo pensando “afe que bosta de filme tu é muito burro por estar perdendo duas horas pra assistir esse lixo, tem que se foder mesmo, eu acho é pouco”.

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