sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

O mar

Tive o sonho mais estranho essa noite. Nele eu estava à beira-mar numa cidade que não é a minha cidade atual. Estava no calçadão ao lado de uma avenida movimentada. As pessoas se locomoviam pelo mar. Elas usavam um meio de transporte que, se não me engano, se chamava dragão marinho. Era como um cavalo nadador, sem patas, em que se montava e se cavalgava por cima das ondas, margeando a avenida movimentada. De certo era mais rápido ou mais conveniente ou saudável ou elegante ou mesmo divertido do que os outros meios de transporte, porque muitas pessoas usavam os dragões marinhos, algumas de roupas social e outras de roupas esportivas e aproveitando a manhã porque estava nublado mas não chovia. Eu observava do calçadão com as mãos nos bolsos quando reparei que em um dos dragões marinhos vinha montado um assaltante. Armado. Ele estava cercado de outros bandidos que se moviam rápido pelo mar com outros dragões marinhos. Eram uma quadrilha de assaltantes sobre dragões marinhos que queriam roubar os dragões marinhos das outras pessoas. Por exemplo: num desses dragões marinhos do crime vinham dois jovens, como se um carregasse o outro no cano de uma bicicleta, que armavam um ataque contra um casal distraído que passeava em roupas esportivas. O primeiro assaltante, aquele com a arma na mão, se aproximava agora de um senhor japonês e dava voz de assalto. O senhor japonês parecia muito atrasado — em alta velocidade, o cabelo ao vento, ele vestido num terno cinza e levando na mão uma pasta preta de couro — e não quis largar o dragão marinho. O assaltante então chegou bem perto do senhor japonês e lhe encostou na cabeça a arma. Era uma pistola preta. Isso tudo em movimento, as ondas batendo, a água respingando, a cena chamando agora a atenção dos transeuntes. Como o senhor japonês não queria largar o dragão marinho, o assaltante puxou o gatilho. A arma fez um estouro que se ouvia da avenida. O senhor japonês tombou de cara na água no mesmo instante, o sangue pintando o mar que até então estava meio cinza. O assaltante jogou uma corda no pescoço do dragão marinho para levá-lo consigo para longe. Na calçada ao meu lado eu ouvia as pessoas que tinham parado para olhar o assalto. Estavam também apreensivas e comentavam: "Meu Deus! É por isso que a gente nunca deve reagir a um assalto! Coitado do senhor japonês! Que mundo é esse em que a gente vive! Alguém chama a polícia sem falta!"

sábado, 16 de setembro de 2017

Em toda parte

A morte está em toda a parte: muitas das folhas que cobrem as florestas e as cidades estão mortas, assim como o estão os muitos insetos que encontramos em casa e fora dela; morto estará um artrópode que apareça na sala de uma família na hora da novela; a mesa do jantar, do almoço, às vezes do café da manhã; os pássaros caídos na rua; os cães atropelados nas rodovias; as placas de trânsito com instruções sobre velocidade máxima ou informações sobre a localização de sítios de inscrições rupestres; os rabos de lagartixas nos batentes de portas; as estrelas que vemos no céu noturno quando não está muito úmido, elas talvez estejam mortas; os deuses aos quais ocasionalmente rezamos; as pessoas com quem conversamos por livros, sonatas e canções: muitas delas estão mortas, e com todas essas coisas nós topamos no decorrer de um único dia, pois naturalmente tudo aquilo que está morto excede por uma necessidade mesmo matemática a totalidade do que está vivo.

Morte dos manjericões que não têm me servido de alimento

Já quase morreram os pés de manjericão. Dos quatro que vieram para o novo apartamento no começo do ano, três sobreviveram, depois de se conformarem com as novas condições. Pegam pouco sol porque na sacada quase não bate sol. O posicionamento do apartamento é todo errado, e mesmo as pessoas só podem pegar sol às beiras de algumas janelas em curtos intervalos das manhãs não nubladas. Uma pimenteira morreu em menos de um mês de endereço novo, mas os pés de manjericão persistem, e já estão aqui há seis meses. De uns tempos pra cá, parei de regá-los diariamente, às vezes passo três ou quatro dias sem regá-los, e talvez até mais tempo, e só faço a rega quando, sentado no sofá, geralmente lendo, com sono e bem alimentado, levanto meus olhos do texto e, ao olhar para a sacada, me comovo ao ver as folhinhas murchas penduradas dos galhinhos tortos e os muitos restos de vegetação espalhados pelo piso. O problema é que não tenho mais uma rotina de cuidado com eles. É muita coisa para cultivar ao mesmo tempo. E também porque tenho usado menos o ar condicionado da sala, cuja mangueira de drenagem alimentava um regador dos bem grandes que fica no canto da sacada, garantindo sempre uma água de fácil distribuição para as plantas, mas também propícia ao mosquito da dengue, enfim. Então agora uma parte relativamente grande da dificuldade é que, para regar as plantas, preciso primeiro pegar água na cozinha, e a distância da cozinha é a maior do que a distância entre a cozinha e a sacada do apartamento em que foram plantados os manjericões e toda a vizinhança leguminosa, e quando me ocorre de ver os manjericões e não estar sentado é porque estou fazendo alguma coisa que deveria ter sido feita há algumas horas e já atrasa outras tarefas que com determinação eu consigo fazer ainda no mesmo dia. O manjericão ao morrer vai perdendo as folhas, que murcham, amarelam e rareiam ao mesmo tempo em que, nas pontas dos galhos, surgem filas de flores e sementes protegidas por bulbos muito verdes e aveludados, que parecem sugar toda a vitalidade que resta da planta moribunda. E eu, o artífice do manjericão, dou-lhe de beber, corto as filas de sementes e flores e espero com isso dar-lhe sobrevida e talvez algum alívio. As sementes e flores eu uso de adubo aos pés da planta, e às vezes receio que haja neste gesto algo de canibal e especialmente sádico.

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Exortação

Sonhei com a minha filha Irina: tinha nascido há poucos dias mas já era um bebê bem gordo e grande que engatinhava pela mesa da cozinha e tentava tocar a a cafeteira Moka, que felizmente já estava fria. Com poucos dias já balbuciava: tinha uma voz grave e, embora mal pudesse diferenciar os pares básicos de fonemas, formava frases, sempre em resposta a alguma coisa que eu tinha feito ou deixado de fazer. Por fim me olhava com a cabeça enorme e os olhos austeros e me exortava: "Se você estivesse prestando atenção, agora já saberia".

Dentes

Pouco depois de tirar o aparelho ortodôntico, uma jovem dormiu sem a contenção e acordou com a mordida desconjuntada: os dentes retorcidos como se por um abridor de lata. Era-lhe quase impossível falar. Tentou usar os dedos para recolocar os dentes no lugar, e eles, os dentes, pareciam voltar a uma posição mais isonômica. A jovem, contudo, fez força demais e acabou quebrando oito dos seus dentes, que se desprenderam de modo indolor da gengiva inferior e da gengiva superior. Os dentes caíram no chão do banheiro. A jovem os recolheu com uma vassourinha, os colocou no bolso da calça de moletom e saiu de casa, numa vila chuvosa de altos pinheiros, à procura de algum dentista que pudesse reimplantar-lhe os dentes. Mas era cedo ainda, umas seis da manhã, e por isso não encontrou pessoa alguma apta a efetuar o reparo dentário.

terça-feira, 27 de junho de 2017

O Tigre

(“The Tyger”, de William Blake. 1794.)
Tigre tigre, que arde e brilha

Em noite funda, negra trilha

Que olho, eterna maestria

Fez tal terrível simetria?



Que fosso ou limbo estelar

Fundiu em chamas teu olhar?

E com que asas se lançava

O que audaz fogo tomava?


Quem com traço tão perfeito

Fez as fibras do teu peito?

E quando o sangue então correu

Que feros pés e mãos ferveu?


E que martelo, que correia,

Que forno a mente incendeia?

Em que bigorna tanto horror

Bate as medidas do terror?


Quando o cosmo todo espanto

O céu cobriu de lança e pranto

Sorriu ele, ao ver-te inteiro?

Fez-te o mesmo do cordeiro?


Tigre tigre, que arde e brilha

Em noite funda, negra trilha

Que olho ou eterna maestria

Ousou terrível simetria?



segunda-feira, 26 de junho de 2017

Todo animal é um esteta

Um leitor desavisado vai se decepcionar com At the Mountains of Madness. O transtorno não vem do que se encontra, mas das faltas. O leitor regular vai ficar o tempo todo se perguntando "O que ele viu? O que aconteceu? Quem são esses bichão?". Algo está sempre para acontecer. O horror deve vir da percepção crescente de que a Terra talvez seja mais velha, fria, feia e perversa do que as paisagens conhecidas. A Terra tem recantos obscuros que assim permaneceram por milênios simplesmente porque ninguém estava olhando: basta prestar atenção a um objeto para que ele comece a se transformar. O mais grosseiro dos seres humanos ainda é, enquanto baba, peida e arrota, um delicado jardineiro. Todo animal é um esteta.

O mar

Tive o sonho mais estranho essa noite. Nele eu estava à beira-mar numa cidade que não é a minha cidade atual. Estava no calçadão ao lado de ...